terça-feira, 9 de dezembro de 2008

CONCEIÇÃO EVARISTO

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EU-MULHER

Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes - agora - o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.

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MENINA

Menina, eu queria te compor
Em verso,
Cantar os desconcertantes
Mistérios
Que brincam em ti,
Mas teus contornos me
Escapolem.
Menina, meu poema primeiro,
Cuida de mim.

Do livro “Poemas da Recordação e Outros Movimentos”

.....
RECORDAR É PRECISO

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos.
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento de vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga.
Mas os fundos oceanos não me amedrontam nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.

in Cadernos Negros – vol. 15

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TODAS AS MANHÃS

Todas as manhãs acoito sonhos
e acalento entre a unha e a carne
uma agudíssima dor.
Todas as manhãs tenho os punhos
sangrando e dormentes
tal é a minha lida
cavando, cavando torrões de terra,
até lá, onde os homens enterram
a esperança roubada de outros homens.
Todas as manhãs junto ao nascente dia
ouço a minha voz-banzo,
âncora dos navios de nossa memória.
E acredito, acredito sim
que os nossos sonhos protegidos
pelos lençóis da noite
ao se abrirem um a um
no varal de um novo tempo
escorrem as nossas lágrimas
fertilizando toda a terra
onde negras sementes resistem
reamanhecendo esperanças em nós.

in Cadernos Negros – vol. 21

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CONCEIÇÃO EVARISTO nasceu em Belo Horizonte/MG em 1946 e reside no Rio de Janeiro desde 1973. Formou-se em Letras (Português-Literaturas) pela UFRJ. Esteve como palestrante, em 1996, nas cidades de Viena e de Salzburgo/Áustria, falando sobre literatura afro-brasileira. Começou a trabalhar com 9 anos como empregada doméstica, foi para o RJ, onde foi lavadeira. È mestre em literatura pela PUC-RJ e faz doutorado em Literatura comparada na Universidade Federal Fluminense. Tem 63 anos (2008).