quarta-feira, 27 de junho de 2007

ORÍDES FONTELA

MIGRAÇÃO

Do Leste vieram pássaros
rápidos leves
nem sombra nem rastro
deixam:
apenas passam. Não pousam.


SILÊNCIO
Grandes árvores
ânforas
transbordantes de silêncio


SEDE (IV)
Bendita a sede
por arrancar nosso olhos
da pedra

Bendita a sede
por ensinar-nos a pureza
das águas

Bendita a sede
por congregar-nos em torno
da fonte


NOTÍCIA

Não mais sabem do barco
mas há sempre um náufrago:
um que sobrevive
ao barco e a si mesmo
para talhar na rocha
a solidão

Orides Fontela, “Poesia Reunida” (1969/1996), editoras: Cosac Naify www.cosacnaify.com.br e 7letras www.7letras.com.br

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terça-feira, 26 de junho de 2007

LAWRENCE FERLINGHETTI

.
MANIFESTO POPULISTA

Poetas, saiam de seus aposentos,
Abram suas janelas, abram suas portas,
Vocês já ficaram muito tempo no fundo
de seus mundos fechados.
Venham, desçam daí, do alto
de suas Russians Hills e Telegraph Hills,
Beacon Hills e Chapel Hills,
Monte Analogues e Monteparnassses,
desçam de suas montanhas e contrafortes,
fora de suas cúpulas e domínios.
As árvores continuam a tombar
e nós não voltaremos às florestas.
Não há tempo mais de se embrenhar nelas
quando o homem queima sua própria casa
para assar um porco
Chega de cantar Hare Khrishna
enquanto Roma queima.
San Francisco está ardendo,
e Moscou de Maiakovski está queimando
os combustíveis fósseis milenares.
A Noite & o Cavalo aproximam-se
devorando luz, calor & poder,
e as nuvens vestem calças.
Não há tempo para o artista se esconder
acima, além, e atrás dos cenários,
indiferente, aparando suas unhas,
refinando-se sozinho sobre o seu próprio existir.
Não há tempo para os nossos joguinhos literários,
não há tempo para nossas paranóias & hipocondrias,
não há tempo para medo e náusea,
há tempo somente para luz & amor.
Nós vimos as melhores mentes de nossa geração
destruídas pelo tédio dos recitais poéticos.
A poesia não é uma sociedade secreta,
muito menos um templo.
Palavras secretas & cânticos não servem mais.
A hora dos mantras já passou,
o tempo agora é de entusiasmo,
um tempo para entusiasmo e alegria
sobre o advento final
da civilização industrial
que é péssima para a Terra e para o homem.
É hora enfrentar a rua
na plena posição de lótus
de olhos bem abertos,
É hora falar alto
proferir um novo e claro discurso,
É hora de comunicar-se com todos os seres sensíveis,
Todos vocês, ‘Poetas das Cidades’
Expostos em museus, incluindo a mim mesmo,
Todos vocês, poetas de poetas escrevendo poesia
sobre poesia,
Todos vocês, poetas de panelas literárias
dos confins do coração da América
Todos vocês, domesticados Ezra Pounds
Todos vocês, alucinados, estranhos e incomuns poetas,
Todos vocês, poetas do concreto-armado,
Todos vocês poetas lambe-cus,
Todos vocês poetas de banheiros públicos, gemendo graffiti,
Todos vocês, viajantes de trens classe A, que nunca gingam
fora do balanço,
Todos vocês, mestres do haikai de serraria nas Sibérias da América,
Todos vocês, fantasiosos sem visão,
Todos vocês, surrealistas ocultos,
Todos vocês, visionários de alcova e agito-propagandistas
de gabinete,
Todos vocês, poetas Groucho-marxistas
e camaradas da classe dos vagabundos,
que passam o dia descansando e falando do proletariado,
Todos vocês, anarco-católicos da poesia,
Todos vocês, poetas Black Montaineers,
Todo vocês bucólicos de Bolinas e bem-pensantes de Boston,
Todos vocês, mães-reclusas da poesia,
Todos vocês, irmãos-zen da poesia,
Todos vocês amantes suicidas da poesia,
Todos vocês, cabeludos professores da poesia,
Todos vocês, resenhistas de poesia
sugadores do sangue do poeta,
Todos vocês, Polícia da Poesia –
Onde estão os filhos selvagens de Walt Whitman,
e as suas grandiosas vozes a se expressar
com doçura e toque sublime,
onde a grandiosa nova visão,
a ampla visão universal
a elevada canção profética
da imensa Terra
e tudo o que nela canta
E nossa relações com ela? -
Poetas, desçam
para as ruas do mundo outra vez
E abram suas olhos & mentes
com o antigo deleite visual,
Limpem suas goelas e elevem a voz,
A poesia está morta, vida longa à poesia
com seus olhos terríveis e a força de um búfalo.
Não esperem a Revolução
ou ela acontece sem vocês,
Parem de murmurar e falem alto
com uma nova e ampla poesia
com um nova sensualidade-comum uma superfície pública
com outros níveis subjetivos
ou outros níveis subversivos,
uma afinada pontada no fundo do ouvido
para soar sob a superfície.
Reconheçam-se em si mesmos um próprio e suave canto
porém cantem junto a palavra “massa” -
Poesia é o condutor
para levar o povo
aos lugares mais elevados
mais que qualquer outro possa conduzi-lo.
Que a poesia ainda precipite-se dos céus
E caia livre em nossas ruas.
Eles não ergueram barricadas, ainda,
as ruas permanece cheias de gente,
homens & mulheres amáveis ainda estão por ali,
adoráveis criaturas por todos os lugares,
e nos olhos de todos o segredo de tudo
ainda lá guardados,
os selvagens filhos de Whitman ainda dormem lá,
e caminharam livremente ao despertar.

......
Do livro “Who are we now”, de 1976. Há no Brasil um livro de Lawrence Ferlinghetti, “Vida sem fim – as minhas melhores poesias” – da extinta Editora Brasiliense. Segundo Nelson Ascher, a poesia de Ferlinghetti marca a luta contra qualquer poder ou instituição que ponha em risco a liberdade e a consciência. Discursiva, fala do apodrecimento do sonho americano e da solidão - e clama aos poetas, que saiam de sua torres e rodas restritas, buscando uma comunicação com as ruas.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

ISADORA DUCAN

UM POEMA

Nietzsche assinou seu
último telegrama “Dionísio crucificado!”
Talvez eu seja a madona que sobe o calvário dançando.
Oh Dionísio, Porte-Flambeau
Ilumine-me o caminho em chamas

...
NUA DIANTE DO MAR

Na infância,
não tive brinquedo ou brincadeiras de criança.
Muitas vezes fugia sozinha para as florestas
ou à praia junto do mar,
e lá dançava.
Sentia que meus sapatos e roupas apenas estorvavam.
Meus sapatos pesados eram como correntes;
minhas roupas eram minha prisão.
Por isso, eu tirava tudo.
E sem olhos me espiando,
inteiramente só,
eu dançava nua diante do mar.
E parecia-me que o mar e todas as árvores
dançavam comigo.

...
POR UM PEDAÇO DE PÃO

Por necessidade,
eu, uma menininha de quatro anos,
fui forçada a dançar diante do público.
Por isso não gosto que crianças dancem diante do público
por dinheiro,
porque eu própria sei o que significa
dançar em troca de um pedaço de pão.

...
RODEADA DE CHAMAS

Os deuses vendem caro seus dons.
A cada alegria corresponde a uma agonia.
Por aquilo que concedem em fama, fortuna, amor,
extraem em sangue e lágrimas,
e profunda tristeza.
Estou continuamente rodeada de chamas.

...
PRINCÍPIOS ESTREITOS DE UM TEMPO

Naquele tempo minha mãe era jovem e linda,
mas, amaldiçoada com os estreitos princípios burgueses,
não sabia usar sua juventude e beleza
nem sua indomável inteligência força.
Estava na prisão daqueles tempos
antes da Emancipação das Mulheres.
Sentimental e virtuosa,
só sabia sofrer e chorar.


SÓ QUERIAM O CORPO

Isso que a humanidade chama de amor
é apenas outra forma de ódio.
Na carne não existe amor.
Tive tanto quanto qualquer pessoa dessa coisa que os homens se atrevem a chamar amor –
homens espumando pela boca -,
homens chorando que iam se matar
se eu não retribuísse o seu amor:
amor – podridão!
.
Eu era assediada de todos os lados
por todos tipos de homens.
O que ele queriam?
Suas emoções,
sei disso agora,
eram as mesmas que sentem por uma garrafa de uísque.
Eles dizem à garrafa:
“Estou com sede. Quero você.
Quero esvaziá-la.
Quero possuir você inteira.”
E para mim diziam as mesmas coisas:
“Tenho fome. Quero você.
Quero possuir seu corpo e sua alma”,
Ah, eles acrescentara a alma,
Tudo bem,
Quando queria era o corpo!

...
AMOR À HUMANIDADE
Amor é coisa rara do mundo.
Até amor materno é em grande parte egoísta.
Um gata ama seus gatinhos até certa idade.
Pessoas falam de amor materno como a coisa mais sagrada do mundo –
Ora, é apenas como amar seus braços e pernas,
é simplesmente amar uma parte de sai mesma.
Esse não era o amor que eu queria.
Eu queria um amor puro e altruísta,
o amor pela humanidade,
sentido por Cristo, Buda e Lenin

...
DEUSES INVENTADOS

Pessoas inventam deuses para agradarem a si mesmos.
Não existem outros.
Nada existe além do que conhecemos, inventamos
ou imaginamos.
Todo o inferno
está bem aqui na Terra.
E todo o paraíso.


..............
Os presentes textos não foram escritos como poema (exceto “Um poema”), foram extraídos dos seus livros My Life e The Art of Dance, condensados e editados aqui pela L&PM Pocket no livro “Isadora – Fragmentos Autobiográficos” - tradução de Lya Luft - e formatados como poemas por Célio Pires.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

LEILA MICCOLIS

.
A ESCOLA

Minha professora
me põe de castigo se desobedeço
me elogia se tiro nota boa,
me ensina, ralha comigo,
e me ameaça, se não fico quieta.
por isso dizem que a professora
é a nossa segunda mães.


.....
DIFERENÇA

Meu mundo é violento e com razão:
na rua, se eu apnaho, é covardia,
em casa, se eu apanho, é educação.


...
VIOLÊNCIA

Todo dia,
as brigas na rua,
as surras em casa,
os castigos no colégio,
a matança das formiga no quintal


...
DOS MALES O MENOR...

Se te chamo de putinha
sou machista e indecorosa.
No entanto, se não chamo,
você não goza...


..........
Leila Míccolis é uma escritora brasileira, considerada da geração poética de 1970, prosadora, escritora de cinema, teatro e televisão. Mestranda de Ciência da Literatura/Teoria Literária na UFRJ. Carioca, trinta livros editados (poesia e prosa), obras publicadas na França, México, Colômbia, África, Estados Unidos e Portugal, teatróloga, roteirista de cinema e escritora de telenovelas.

AGOSTINHO NETO

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VOZ DO SANGUE

Palpitam-me
o sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue

Ó negro esfarrapado do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor de África

Negros de todo mundo
eu junto ao vosso canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos

E vos acompanho
pelas emaranhadas áfricas
do nosso rumo

Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa dor
meus irmãos

....
MEU GRANDE POEMA

Quando os homens tiverem
tempo de ouvir música
de cuidar de seus jardins
me encontrareis cantando
um grande poema

Quando forem destruídos
os preconceitos
quando as mulheres
puderem sorrir para
todos os homens
me encontrareis cantando
um grande poema

Quando houver trabalho livre
quando for franco o amor
me encontrareis cantando
um grande poema

......

Estes poemas têm especial relevância, pois foram escritos por aquele que veio a se tornar o primeiro presidente de Angola, após a libertação do jugo português. Foi ele militante aguerrido da luta anticolonial. Morreu em 1979, com 57 anos. Teve um livro editado no Brasil, “Poemas de Angola”.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

MÁRIO QUINTANA

.
POEMINHA DO CONTRA

Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho
Eles passarão...
Eu passarinho!


...
DA CALÚNIA

Sorri com tranqüilidade
Quando alguém te calunia.
Quem sabe o que não seria
Se ele dissesse a verdade.

...

Além da ironia explícita, os poemas de Mário Quintana expressam solidão, mas sem desesperança: “Eu fico, junto à correnteza,/ Olhando as horas tão breves.../ E das cartas que me escreves/ Faço barcos de papel! (de Eu escrevi um poema triste).
As marcas do tempo estão sempre presentes: “Antes, todos os caminhos iam./ Agora todos os caminhos vêm./ A casa é acolhedora/, os livros poucos./ E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas” (Envelhecer).
Sobre a experiência da idade, desdenha: “A experiência de nada serve à gente./ É uma médico tardio, distraído:/ Põe-se a forjar receitas quando o doente/ Já está perdido...” (Da experiência)

YOKO ONO

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PEÇA EM EDIFÍCIO PARA ORQUESTRA

Ir de uma habitação a outra
abrindo e fechando cada porta

Não fazer nenhum ruído
Ir do alto do edifício
Até embaixo


....
PEÇA AQUÁTICA

Roubar a lua da água com um balde.
Seguir roubando até não se ver a lua
na água.


....
PEÇA DE SANGUE

Usar o próprio sangue para pintar.
Seguir pintando até desmaiar-se.
Seguir pintando até morrer


...
CONCERTO DE RELÓGIOS


Tomar todos os relógios da cidade.

Pôr cada um em uma hora diversa, arbitrariamente,
conforme um sistema inventado para um.

Qualquer sistema é aceitável sempre
Que nenhum relógio seja posto intencionalmente na hora certa


...
CONCERTO DE LUZ

Levar uma bolsa vazia
Subir ao cume de um monte.
Colocar na bolsa toda a luz que puder.
Voltar a casa quando escurecer.
Pendurar a bolsa no meio da sala
No lugar de uma lâmpada elétrica.


...
Textos do livro Grapefruit, de Yoko Ono, editado originalmente em Tókio, em 1964editado também, em 1970, nos EUA, e no mesmo ano na Argentina, de cuja edição onde se extrai essa pequena mostra, a partir da tradução de Pirí Lugones, Ediciones de La Flor e que adaptei para o português.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

ARTHUR RIMBAUD

.
Se tenho fome é apenas
pela terra e pelas pedras.
Meu almoço é sempre o ar,
carvão, ferro e rocha

Minhas fomes rondam,
correndo pelos trigais,
mas só lhes atraem
o veneno da câmpanulas

Comem seixos quebráveis,
pedras velhas das igrejas,
calhaus dos naufrágios
e pães jogados nas cinzas

...

O lobo uiva no mato
e cospe belas penas
da sua comida de aves:
tal ele, assim eu faço

Os legumes e os frutos
esperam que lhe colham,
mas a aranha vaia à caça
e só come violetas raras

Que eu durma e ferva
nos altares de Salomão.
A ferrugem que dali corra,
tinja as águas do Cedrão

............
O poeta francês Jean-Nicolas Arthur Rimbaud nasceu em 20/10/ 1854 e, ainda criança, surpreendeu seus professores pela inteligência - e aos colegas anunciava que seria explorador, o que cumpriu à risca. Hostilizado por grupos literários do seu tempo, que não compreendiam o seu gênio e nem toleravam sua postura. Agressividade, vida boêmia, perversão sexual, além do uso de drogas excitantes e a insônia voluntária caracterizaram a conduta do poeta – que por fim optou pelo espírito aventureiro nato e foi negociar armas na África, onde, depois de muitas desventuras e negócios pouco recomendáveis, contraiu doenças e teve que amputar uma perna. Morreu com 37 anos, em 1891, vítima de câncer.
No campo das letras, os seus textos, a maioria em prosa poética, são marcos na poesia do planeta, pela contundência, revolta e aventura – como na vida – foi único, inimitável. “O sono na riqueza é impossível. A riqueza sempre foi bem público”, diz um de seus versos. “A gente não parte. Retoma o caminho”, diz em outro. E mais: “Tornei-me uma ópera fantasiosa: vi que todos os seres têm a fatalidade da felicidade: a ação não é vida, mas o modo de gastar alguma força, um depauperamento. A moral é a fraqueza do cérebro”.

BOB DYLAN

LIKE A ROLLING STONE
.
Houve um tempo em que você se vestia com roupas finas,
Lembra? E jogava moedas de dez centavos aos vadios.
As pessoas diziam: “cuidado baby, você pode cair”.
Você achava tudo uma brincadeira
E ria despudoradamente
Dos pobres sem-nada.
Agora você não fala mais tão ruidosamente
Agora você não parece tão orgulhosa
Pois sabe que tem de batalhar pela próxima refeição.

Como se sente
Como se sente
Sem ter onde repousar
Como uma completa estranha
Como uma pedra rolando?

Você foi à escola mais fina, não é miss solidão?
E só agora sabe que ali apenas te mimaram
E ninguém jamais te ensinou como viver na rua,
E hoje você sabe que vai ter de se acostumar a isso.
Você disse que nunca seria condescendente
Com certo tipo de vida obscura, mas agora você percebe,
Nenhum pretexto lhe resta
Enquanto você olha dentro do vazio dos olhos dele
E sabe que não tem álibi para um acordo

Como se sente
Como se sente
Estando só consigo mesmo
Sem um lar para retornar
Como uma completa estranha
Como uma pedra rolando?

Você nunca olhou para as brincadeiras dos malabaristas e palhaços
Quando estes vinham lhe mostrar alguma arte.
Você nunca compreendeu que não era melhor que eles,
Nem devia ter deixado de ver o que eles faziam para ti.
Costumava passar sobre um cavalo nobre, com seu procurador
Que trazia ao ombro um gato siamês,
Mas foi duro ter descoberto que ele
Não era exatamente o que o que você esperava
Depois que lhe roubou tudo o que pode.

Como se sente
Como se sente
Estando só consigo mesmo
Sem um lar para retornar
Como uma completa estranha
Como uma pedra rolando?

...........
Embora um compositor pop, na essência, é significativa a presença poética de BoB Dylan no mundo. Suas letras expressam a mais perfeita tradução da poesia norte-americana, de Walt Whitman a Allen Ginsberg: densa, discursiva e anti-stabilishment, o que me basta.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

BRUNA LOMBARDI

TOCAIA
.
Que o amor nos possuísse
no meio de um descampado
num jogo que não tem regra
nem pecado

Numa tortura lenta
com ritual absoluto
que o amor nos possuísse
doce e absoluto

Que houvesse fuga e corrida
e grito agudo na boca
que a dança fosse selvagem
e louca

Com maldade instintiva
guerra de unha e dente
todo impulso desmedido
corpo quente

Depois na hora do cerco
firmes os cinco sentidos
vem o animal e se envolve
atraído

Pra que dure mais o jogo
ora foge ora se entrega
se joga se abre provoca
depois nega

Cúmplice do adversário
de manso se defendendo
vai pouco a pouco à cilada
cedendo

Corpo todo se espalhando
no meio do descampado
na luta quem não domina
é dominado

E aí segura a corrente
manseia cavalo bravo
na luta quem não é senhor
é escravo

Chegada a hora da posse
o momento mais violento
novilha presa arqueia
sem movimento

No meio do seu combate
foi afinal possuída
e geme pra essa morte
melhor que a vida

Se enrosca sentido o gosto
de ter sido capturada
sabendo que foi vencedora
e derrotada

E depois de tudo resta
um cansaço ainda melhor
sorriso dentro do corpo
fora o suor

Que o amor nos possuísse
com sensação de perigo
no meio do descampado
com dois inimigos

FLORBELA ESPANCA

.
FANATISMO

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."

.......
Florbela Espanca nasceu no Alentejo (Portugal) a 8 de dezembro de 1894. Casou três vezes e todos lhe trouxeram desilusões amorosas, isso, somado à morte do irmão, Apeles Espanca, a quem teve fortes laços afetivos, num acidente, marcaram profundamente sua vida e obra. Em dezembro de 1930, agravados os seus problemas de saúde, sobretudo de ordem psicológica, Florbela morreu. O seu suicídio foi socialmente manipulado. Oficialmente foi apresentada como causa da morte: «edema pulmonar». Fanatismo foi musicado magistralmente por Raimundo Fagner.

ALAN WATTS

.
DEUS BRINCA DE ESCONDE-ESCONDE

Deus também gosta de brincar de esconde-esconde,
Mas como não há coisa alguma fora de Deus,
Ele só pode brincar consigo mesmo.
Finge que é você e eu e todas as pessoas do mundo,
Todos os animais, todas as plantas, todas as rochas e todas as estrelas
E assim se esconde tão bem que demora muito tempo
para lembrar de onde e como se escondeu.
É por isso que é difícil para nós descobrirmos que somos Deus disfarçado,
fingindo que ele não é ele...
Seu ser está escondido inteligentemente porque é Deus escondendo-se,
da mesma maneira que não podemos ver nossos olhos sem o auxílio de um espelho.

.......
Atribuído a Alan Watts

SOLANO TRINDADE

GRAVATA COLORIDA

Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada...

........
Pernambucano, Francisco Solano Trindade morreu em 1974, aos 65. Foi que cravou a saudação "mano", hoje prefixo obrigatório entre rappers e jovens da periferia. Expressão poética maior da negritude brasileira, também foi cineasta, pintor e teatrólogo. Um dos poemas mais populares de Solano Trindade é "Tem Gente com Fome", musicado por João Ricardo e gravado pelos Secos & molhados: “Trem sujo de Leopoldina/ correndo correndo/ parece dizer/ tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome...”

MAIAKOVISKI,

O AMOR

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.

Ela é tão bela,
que por certo, hão de ressuscitá-la.
no trigésimo século
ultrapassará o enxame
de mil nadas,
que dilaceram o coração.
Então,
de todo o amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.

Ressuscita-me,
Nem que seja só porque te esperava
Como um poeta,
Repelindo o absurdo quotidiano!

Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Nem que seja só por isso!

Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
pra que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
- Camaradas!
atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.

Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra

...........
Poema de 1923, tradução de Carrera Guerra, editora Max Limonad, Brasil. O presente poema tem outra versão de Caetano Veloso, que também musicou parte dos versos. Faz parte de um longo poema, o “A propósito disto”.

ZÉ LIMEIRA

.
POESIA DO ABSURDO

Eu me chamo Zé Limeira,
Cantador velho boeme
Só gosto de duas coisa:
Vida boa e muié feme
Ainda o ano passado
Fui pai dum casal de geme.

Não deixo a minha rocinha
Pelas festança da praça
Cavalo magro não corre,
Cachorro doido não caça
Conheço pai do menino
Pala barguia da calça

Se tu for na minha casa
Tem capim pro teu cavalo,
Se chegar um filósofo
Eu mando fotografá-lo
Se chegar um fotógrafo
Eu mando filosofá-lo

Na profissão de viola
Vivo nesse vai-não-vem,
Dom Pedro foi home forte
Que sabia andar de trem
Se casou-se e foi morar
Perto de Betelelém

...

O velho Thomé de Souza
Governador da Bahia
Casou-se e no mesmo dia
Passou a pica na esposa
Ele fez que nem a raposa:
Comeu na frente e atrás,
Chegou na beira do caís,
Onde o navio trafega
Comeu o padre Nóbrega
Os tempos não voltam mais.

.........
Zé Limeira nasceu em 1886 na Serra da Boroborema, Paraíba, foi cantador-andarilho. Sorridente, comunicativo e bonachão, consta que vagou por vários Estados do Nordeste, sempre a pé, exposndo sua arte. Sem conhecer o surrealismo fazia versos absurdos, inventava palavras para não perde a rima, distorcia palavras e misturava situações, personagens históricos e bíblicos, tudo num só balaio de versos. Tinha voz de barítono e dicção perfeita, mas não tinha papas na língua. Além de palavras chulas, falava de sexo com desinibição, e deturpava tudo, Pedro Álvares Cabral inventou o telefone, Pedro II governou a Palestina, Jesus passou por Guarabira e por aí ia, sem frios, atrás da rima.
O versos acima foram extraídos do livro Zé Limeira – Poeta do Absurdo,de Orlando Tejo, que fez ampla e árdua pesquisa sobre este grande versador e cantador, já que o poeta não deixou escritos. Edição do Senado Federal, coleção Machado de Assis,1980.

BERTOLD BRECHT

HOLLYWOOD

A cada manhã, para ganhar meu pão
Vou ao mercado onde mentiras são compradas
Esperançoso
Tomo lugar entre os vendedores

.......
Da série de poemas escritos pelo poeta e dramaturgo alemão entre 1941-1947, extraído do livro "Poemas 1913-1956", da Editora 34, tradução de Paulo César de Souza.

CHICO CÉSAR

CANTÁTEI – 28

nem parnaso nem concreto
o amor analfabeto
não lê poemas de amor
tanto faz lápis de cor
ou computador que escreva
a linguagem mais longeva
que o amor reconhece
é o próprio amor, sua prece
é a pane do motor
é o silêncio do tambor
é a bomba na quermesse

.........
Do livro Cantáteis – Cantos elegíacos de ‘amozade’, editora Garamond, escrito em 1993. São 141 cantos de amor e amizade a uma mulher, que estão sendo musicado pelo próprio autor.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

ALLEN GINSBERG

UIVO

Eu vi expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
hispsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades, contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos,
que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os estudioso da guerra,
que foram expulsos das universidade por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seus dinheiro em cestos de papel, escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas públicas votando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York,
que comeram fogo em hotéis pintados ou beberam terembintina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram seus torsos noite após noite
com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigílias álcool e caralhos e intermináveis orgias,
incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula e clarão na mente pulando nos postes dos pólos de Canadá & Paterson, iluminando completamente ,undo imóvel do Tempo intermediário,
solidez de Peiote dos corredores,aurora dos corredores, aurora de fundo de quintal das verdes árvores do cemitério, porre de vinho nos telhados, fechadas de lojas de subúrbio na luz cintilante de néon do tráfego na corrida de cabeça feita do prazer, vibrações de sol e lua e árvore no ronco de crepúsculo de inverno de Brooklyn, declamações entre latas de lixo e a suave soberana luz da mente,
que se acorrentaram aos vagões do metrô para o infindável percurso do Battery ao sagrado Bronx de benzedrina até que o barulho das rodas e crianças os trouxesse de volta, trêmulos, a boca arrebentada e o despovoado deserto do cérebro esvaziado de qualquer brilho na lúgubre luz do Zoológico,
que afundaram a noite toda na luz submarina de Bickford´s, voltaram à tona e passaram a tarde de cerveja choca no desolado Fuggazi´s escutandoo matraquear da catástrofe na vitrola automática de hidrogênio,
que falaram setenta e duas horas sem parar do parque ao apê ao bar ao Hospital Bellevue ao Museu à Ponte de Brooklyn,
batalhão perdido de debatedores platônicos saltando dos gradis das escadas de emergência dos parapeitos das janelas do Empire State da Lua.
Tagarelando, berrando, vomitando, sussurrando fatos e lembranças e anedotas e viagens visuais e coques nos hospitais e prisões e guerras,
Intelectos inteiros regurgitados em recordação total com os olhos brilhando por sete dias e noites, carne para a sinagoga jogada à rua,
Que desapareceram no Zen de Nova Jersey de lugar algum deixando um rastro de postais ambíguos do Centro Cívico de Atlantic City,
Sofrendo supores orientais, pulverizações tangerianas de osso e enxaquecas da China por causa da falta de droga no quarto pobremente mobiliado de Newark
(...)

.........
Poeta maior da geração beat, militante pacifista, homossexual, personalidade marcante, capaz de desviar os caminhos da poesia americana do séc. XX. Um furacão poético, emblema de uma geração genuínamente revolucionária e iluminada. Este poema é enorme, aqui tem parte dele, prometo completá-lo em breve.

NAJAH ÐL®

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A LOBA

Dos meus bichos todos
a loba é a mais perigosa
aquela que te arrebenta no gozo
e uiva por cima... gostosa

A que escala picos, sobe montes
vasculha no breu da floresta
encara qualquer um que a afronte
e na cama é a profana, a que não presta

A loba que mostra os dentes
e no branco brilho e a dentadas
te acode se o perigo é fremente
e te mata se sente ameaçada

Bicho fiel, quando carinhado
uma louca de cio alucinado,
Bicho mortal, quando enganado
fatal, se em pêlos ouriçados

Viajadora de matas sem lei
que abate, trucida e fere
no acuo de um falso rei

Bicho solto que pode comer na tua mão
ou arrancá-la, por qualquer senão.

.........
Misteriosa poeta, só é encontrada em sites de poesia, é uma mutante. Não se sabe bem quem está por trás deste exótico nick. De cultura apurada, versos luxuosos é também bruxa autêntica. Ela tem poesia aos montes e escreve aos cachos. Desaparece, mas pode voltar nesta pele ou noutra. Figura mítica, como poucas, não faz questão de livro impresso, nem tem pressa ou avidez pelo sucesso.

PAULO LEMINSKI

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UM HOMEM COM UMA DOR

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra

.........
Do livro Melhores Poemas, Global Editora. Foi musicado por Itamar Assunção

JORGE MAUTNER

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O SOM CONTRA A GUERRA

Cinco mil esquadrilhas dos anjos de Deus aterrizaram ali,
no meio daquele planeta Terra,
quando nervos eram esticados de um campo de concentração
ao outro, como se fossem arame farpado,
e tocaram suas trombetas e derrubaram as Muralhas de Jericó.

As Muralhas de Jericó foram derrubadas pelo som...
É o som, mesmo, derrubando as muralhas do ódio e das guerras. Porque, somente o som poderia derrubá-las,
por que o som vem antes da palavra.
O som não tem certo nem errado,
nem em cima nem em baixo,
nem esquerda nem direita. Nem centro.
O som junta a alegria e a tristeza numa só vibração.
O som faz da própria dissonância da amargura do artista...
Tudo se transformar em pedrarias de harmonias e telepatias.

Se existisse o som antes da palavra talvez nem tivesse a guerra.
O som existe até onde se pensa que não existe som.
Porque os pensadores dizem que a gente deve prestar atenção ao som do silêncio.
O silêncio enche-se de vozes, porque os mortos estão cheios de vozes.
Porque os mortos continuam vivos na idéia da história que se transmite também pelo som
E a palavra tem que ter som.
Somente o som pode derrubar as muralhas dos ódios,
dos totalitarismos, das tiranias, das ditaduras, das linhas duras,
de todas as patrulhas ideológicas,
de todos os extremismos.
Somente o som poderia, junto com a flecha de cupido,
furar o coração sem coração do sempre ameaçador abutre do nazismo universal.

.........
O presente texto foi gravado de forma amadora em um show de Jorge Mautner numa perdida noite do início dos anos 80, em São Paulo, num teatro no bairro das Perdizes. Este deve diferir muito da sua forma impressa (se tiver), pois Mautner improvisou muito nesta noite.

ARNALDO ANTUNES

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O BURACO DO ESPELHO

O buraco do espelho está fechado.
Agora eu tenho que ficar aqui,
com um olho aberto, outro acordado,
no lado de lá onde caí.
Pro lado de cá não tenho acesso,
mesmo que me chamem pelo nome,
mesmo que admitam meu regresso.
Toda vez que eu vou a porta some.
A janela some na parede.
A palavra de água se dissolve.
Na palavra sede, a boca cede,
antes de falar, e não se ouve.
Já tentei dormir a noite inteira,
quatro cinco, seis da madrugada.
Vou ficar ali nesta cadeira,
uma orelha alerta, outro ligada.
O buraco do espelho está fechado.
Agora eu tenho que ficar agora,
Fui pelo abandono abandonado,
aqui dentro do lado de fora.

...........
Este poema é declamado no filme Bicho de 7 Cabeças

W. H. AUDEN

FUNERAL BLUES

.....
Parem os relógios
cortem o telefone
e impeçam o cão de latir.
Silencie o piano
e com um toque de tambor
tragam o caixão.
E derramemos nossos prantos.
Voem em círculo os aviões,
escrevam no céu a mensagem:
Ele está morto.
Ponham o laço de luto nos pescoços brancos das pombas.
Usem os policiais luvas pretas de algodão.

Ele era meu norte, meu sul
meu leste e oeste.
Minha semana de trabalho
e meu domingo.
Meu meio-dia, minha meia-noite.
Minha prosa e minha canção.
Pensei que o amor fosse eterno,
engano meu.

As estrelas são indesejadas agora,
apaguem todas.
Embacem a lua e desmantelem o sol.
Despejem o oceano e varram o bosque,
pois nada agora pode servir

........
Poema declamado no filme “4 Casamentos e um Funeral”.

TORQUATO NETO

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COGITO
eu sou o que sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medido do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

.......
Do livro “Últimos Dias de Paupéria”, Livraria Eldorado Tijuca, 1973 (esgotado)

WALLY SALOMÃO

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DESPAUTADO

Juntar todos os meus escritos,
botar debaixo do braço,
levar pra Drummond ver,
bater na sua porta,
entrar em sua casa pra ouvir o poeta
falar que literatura não existe.

Pela manutenção do culto aos mestres.
do aprendiz.

.......
Do livro “Me Segura que eu vou dar um troço”, José Álvaro Editor, RJ, 1972 (esgotado)

ANTONIN ARTAUD

....
De: CARTA AOS REITORES (parte)

Basta de jogo de palavras,
de artifícios de sintaxe,
de malabarismos formais;
precisamos encontrar – agora –
a grande Lei do coração,
a Lei que não seja uma Lei, uma prisão,
senão um guia para o espírito perdido
em seu próprio labirinto.
Além daquilo que a ciência jamais poderá alcançar,
Ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens,
esse labirinto existe,
núcleo para o qual convergem todas as forças do ser,
as últimas nervuras do espírito

....

De: CARTA ÀS ESCOLAS DE BUDAS

Vós que não estais na carne,
que sabeis em que ponto de sua trajetória carnal,
de seu vai e vem insensato,
a alma encontra o verbo absoluto,
a palavra nova,
a terra interior.

Vós que sabeis como alguém dá voltas no pensamento
e como o espírito pode salvar-se de si mesmo.
Vós que sois interiores de vós mesmos,
que já não tendes um espírito ao nível da carne:
aqui há mãos que não se limitam a tomar,
cérebros que vêem além de um bosque de tetos,
de um florescer de fachas,
de um fogo e de mármores.
Ainda avance esse povo de ferro,
ainda que avancem as palavras escritas com a velocidade da luz,
ainda que avancem os sexos um até outro coma violência de um ‘canhonaço’,
o quê haverá mudado nas rotas da alma, o quê nos espasmos do coração,
na insatisfação do espírito?

Por isso, lança às águas todos esses brancos
que chegam com suas cabeças pequenas
e seus espíritos já manejados.
É necessário agora que esses cachorros nos ouçam:
Não falamos do velho mal humano.
Nosso espírito sofre as necessidades que as inerentes à vida.
Sofremos de uma podridão, a podridão da Razão.

A lógica da Europa esmaga sem cessar o espírito e volta a fechá-lo.
Porém agora, o estrangulamento chegou ao cúmulo,
já faz demasiado tempo padecemos sob sue jugo.
O espírito é maior que o espírito,
as metamorfoses da vida são múltiplas.
Como vós, rechaçamos o progresso:
vinde, deitemos abaixo nosso escribas escrevendo,
nossos críticos resmungando,
nossos agiotas roubando com seus moldes de rapina,
nosso políticos arengando
e nossos assassinos legais incubando seus crimes em paz.
Nós sabemos – sabemos muito bem – o que é a vida.
Nosso escritores, nossos pensadores, nossos doutores,
Nossos charlatães coincidem nisso: em frustrar a vida.

Que todos estes escribas cuspam sobre nós,
que nos cuspam por costume ou por mania,
que nos cuspam porque são castrados de espírito,
porque não podem perceber os matizes,
os barros cristalinos, as terras giratórias onde o espírito elevado dos homens se transforma sem cessar.
Nós captamos o pensamento melhor.
Vinde.
Salvai-nos destas lavras.
Inventai para nós novas moradas.

........
Os dois textos são do livro "Cartas aos Poderes", editora Villa Martha, Porto Alegre (RS), 1979. Este livro traz textos redigidos como se fossem cartas abertas, dirigidos contra instituições burocráticas e seus representantes, aos quais o movimento surrealista organizava seu clamor de protesto. O autor, que era homem de teatro, participava do grupo Central de Investigação Surrealista, tinha 29 anos quando escreveu os textos acima, em 1925 - sem ter a intenção de poesia, entretanto, estão impregnados de poesia. Tradução de Irineu Corrêa Maisonnave.

MANOEL DE BARROS

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SEGUNDO DIA 2.5

Estou muito completo de vazios
Meu órgão de morrer me predomina
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Estou rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

.......

De “O Livro das Ignorãças”, Record 1993

MARTA MEDEIROS

DE CARA LAVADA - 156
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De todos os versos de amor
as rimas e frase reinventada
as jogadas de efeito
os subterfúgios e os hai-kais
anotações de diário
de todos os nomes que dei
para crise de adolescência
e carências plagiadas
de todo o minimalismo
clices e letras de música
de toda minha literatura
você ainda é a melhor página

........
De Poesia Reunida L&PM Pocket.

CLARICE LISPECTOR

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O É DAS COISAS

Tenho um pouco de medo:
medo ainda de me entregar
pois o próximo instante é o desconhecido.
O próximo instante é feito de mim?
ou se faz sozinho?
Fazemo-lo juntos com a respiração.
E com uma desenvoltura de toureiro na arena.
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão
do instante-já que de tão fugidio não é mais
porque agora tornou-se um novo instante-já
que também não é mais.
Cada coisa tem um instante em que ela é.
Quero apossar-me do é das coisas.
Esses instantes que decorrem do ar que respiro:
Em fogos de artifício
Eles espocam mudos no espaço.
Quero possui os átomos do tempo.
E quero capturar o presente
que pela sua própria natureza me é interdito:
o presente me foge,
a atualidade me escapa,
a atualidade sou eu sempre no já.
Só no ato do amor –
pela límpida abstração de estrela do que se sente –
capta-se a incógnita do instante
que é duramente cristalina e vibrante no ar
e a vida é esse instante incontável,
maior que o acontecimento em si.

........
Texto montado sobre texto de Clarice Lispector, do livro Água Viva, Círculo do Livro, 1973.

ULISSE TAVARES

ALÉM DA IMAGINAÇÃO

Tem gente passando fome.
E não é a fome que você imagina
entre uma refeição e outra.
Tem gente sentindo frio.
E não é o frio que você imagina
entre o chuveiro e a toalha.
Tem gente muito doente.
E não é a doença que você imagina.
entre a receita e a aspirina.
Tem gente sem esperança.
E não é o desalento que você imagina
entre o pesadelo e o despertar.
Tem gente pelos cantos.
E não são os cantos que você imagina
entre o passeio e a casa.
Tem gente sem dinheiro.
E não é a falta que você imagina
entre o salário e o vale.
Tem gente pedindo ajuda.
E não é aquela que você imagina
entre a escola e a novela.
Tem gente que existe e parece
imaginação.

WALDIRES DE BARROS

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NOITES

1.
A última estrela do céu
Deixou a noite sozinha
E a noite... chorou sereno


2.
Espreguicei-me...
Sem querer feri o infinito.
Ah! Se soubesse!
Os céus sangraram estrelas.

ALEX POLARI

ZOOLÓGICO HUMANO

O que somos
e algo distante
do que fomos

ou pensamos ser.
Veja o mundo:
ele se move
sem nossa interferência
veja a vida:
ela prossegue
sem nossa licença
veja sua amiga:
ela se comove
por outros corpos
que não o seu.

Somos simplesmente
o que é mais fácil ser:
lembrança
sentimento fóssil
referência ética
apenas um belo ornamento
para a consciência dos outros.

A quem interessar possa:
Estamos abertos à visitação pública
sábados e domingos
das 8 às 17 horas.

.........

Alex Polari de Alverga é nascido em João Pessoa (PB), em 1951. Teve publicado seu primeiro livro de poesia, Inventário de Cicatrizes, em 1978. Na época era preso político do regime militar brasileiro, permanecendo entre 1971 e 1980. Seu segundo livro, Camarim de Prisioneiro é de 1980. Ao sair da prisão surpreendeu a todos ao ingressar na comunidade esotérica Santo Daime, no Amazonas. Sua poesia expressa seu lado político e sua experiências de cárcere, de tortura.

VICTOR HUGO

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POEMA

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.

Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.

Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga "Isso é meu",
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.

Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar.

WALT WHITMAN

CANTO A MIM MESMO

Com música forte eu venho
com minhas cornetas e meus tambores:
não toco hinos
só para os vencedores consagrados
tocos hinos também
para as pessoas batidas e assassinadas.

Vocês já ouviram dizer
que ganhar o dia é bom?
pois eu digo que é bom também perder:
batalhas são perdidas
com o mesmo espírito
com que as ganhas.

Eu rufo tambores pelos mortos
e sopro nas minhas embocaduras
o que de mais alto e mais jubiloso
posso por eles.

Vivas àqueles que levaram a pior!
E àqueles cujos navios de guerra
afundaram no mar!
e a todos os generais
das estratégias perdidas,
que foram todos heróis!
E ao sem-número dos heróis desconhecidos,
Equivalentes aos heróis maiores
que se conhecem!

........
De Walt Whitman, tradução de Geir Campos, do livro Folhas das Folhas de Relva, Brasiliense (esgotado).

GLAUBER ROCHA

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1922

meu povo é triste
é de pau perado
é um povo mole
de zés perado

meu povo é doce
malandro sensual
é um povo gostoso
dançarino musical

meu povo é mestiço
linguarudo fofoqueiro
é um povo inteligente
ignorante e condoreiro
meu povo é grande
no litoral e sertão
é um povo ah meu povo
é povo revolução

........
De Glauber Rocha, Havana, 1972, do livro Poemas Escolhidos, Alhambra, 1989 (esgotado).

MÁRIO DE ANDRADE

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QUANDO EU MORRER

Quando eu morrer quero ficar,
não contem aos meus inimigos,
sepultado em minha cidade,
saudade.

Meus pés enterrem na Rua Aurora,
no Paissandu deixem meu sexo,
na Lopes Chaves a cabeça
esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
o meu coração paulistano:
um coração vivo e defunto
bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
direito, o esquerdo nos Telégrafos,
quero saber da vida alheia,
sereia.

O nariz guardem nos rosais,
a língua no alto do Ipiranga
para cantar a liberdade.
saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
assistirão ao que há de vir,
o joelho na Universidade,
saudade...

As mãos atirem por aí,
que desvivam como viveram,
as tripas atirem pro Diabo,
que o espírito será de Deus.
Adeus.

........

Do livro Lira Paulistana, Martins Editora, 1945.

VINÍCIUS DE MORAIS

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SONETO DA SEPARAÇÃO

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

GARCIA LORCA

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SINTO

Sinto
Que em minhas veis arde
Sangue,
Chama vermelha que vai cozendo
Minhas paixões no coração

Mulher, por favor,
Derramai água
Quando tudo se queima,
Só as fagulhas voam
Ao vento.

DOM PEDRO CASADÁLIGA

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SÃO PAULO, OUTRA

Abismo
De cimento

Vulcão de rebeldia.

Poluída também
De liberdade.

Quando rompe uma flor em teu asfalto
Todo o Brasil acorda

ATAHUALPA YUPANQUI

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O MENINO

A noite com as espumas do rio, te estão tecendo um enfeite, menino
Quero a estrela da noite a mais bela, para brilhar no teu riso,
Menino . . .
Menino, dorme sorrindo menino
Ah menino

O menino quis ser peixe e correu à beira do mar
Pôs os pés dentro d'água
Mas não pôde ser peixe.

O menino quis ser nuvem e seus olhos ao céu levou
Voava a nuvem no ar
Mas o menino não voou.

E o menino quis ser homem, e forte compôs sua voz
Mas o mundo era tão seu,
Que o menino, assim menino cresceu

Foram passando os anos e o menino se fez homem
E andou por estes mundos misturando desespero e dor
E um dia, o homem quis ser menino, quis ser nuvem,
Quis ser peixe . . .
Mas a praia era de angustia, e as nuvens passaram ao longe
E vai o homem pelo mundo, com razão ou sem razão
E leva um menino frustrado, gemendo em seu coração.

Que belo mundo é seu mundo menino, ah, menino
Menino dorme sorrindo menino, ah, menino . . .

.......
Versão de Dércio Marques

PABLO NERUDA

CANÇÕES DE AMOR - VII

Para meu coração basta teu peito
para tua liberdade bastam minhas asas.
Desde minha boca chegará até o céu
o que estava dormindo sobre tua alma.
E em ti a ilusão de cada dia.
Chegas como o sereno às corolas.
Escavas o horizonte com tua ausência
Eternamente em fuga como a onda.
Eu disse que cantavas no vento
como os pinheiros e como os hastes.
Como eles és alta e taciturna.
e intristeces prontamente, como uma viagem.
Acolhedora como um velho caminho.
Te povoa ecos e vozes nostálgicas.
eu despertei e as vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam em tua alma.

........
Do livro "20 canções de amor e um poema desesperado"

ÁLVARES DE AZEVEDO

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SE EU MORRESSE AMANHÃ

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que dove n'alva
Acorda a natureza mais loucã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

JOÃO CABRAL DE MELLO NETO

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TECENDO A MANHÃ

1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

PATATIVA DO ASSARÉ

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MINHA SERRA

Quando o sol ao nascente se levanta
Espalhando os seus raios pela terra
Entre a mata gentil da minha serra
Em cada galho um passarinho canta.

Que bela festa! Que alegria tanta!
E que poesia o verde campo encerra!
O novilho gaiteia, a cabra berra
Tudo saudando a natureza santa.

Ante o concerto dessa orquestra infinda
Que o Deus dos pobres ao serrano brinda
Acompanhada da sua aragem,

Beijando a choça do feliz
Sinto brotar da minha rude lira
O tosco verso do cantor selvagem

MANUEL BANDEIRA

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Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão,
salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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RESÍDUO

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

FERREIRA GULLAR

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NÂO HÁ VAGAS

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

........

O maranhense Ferreira Gullar é o marco da poesia de contestação no Brasil. Seu livro Poema Sujo é, na minha opinião, o melhor no gênero. Continua sendo um dos melhores, dentre os vivos.

NADINE STAIR

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INSTANTES

Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido;
na verdade, bem poucas pessoas levariam a sério.
Seria menos higiênico. Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvete e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu
sensata e produtivamente cada minuto da sua vida.
Claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar a viver,
trataria de ter somente bons momentos.
Porque, se não sabem, disso é feito a vida:
só de momentos - não percas o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma
sem um termômetro, uma bolsa de água quente,
um guarda-chuva e um pára-quedas;
se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos
e sei que estou morrendo.

.......
Poema atribuído a Jorge Luís Borges, na realidade, a verdadeira autora, é a norte-americana Nadine Stair, que tinha 85 anos e estava à beira da morte quando o escreveu, segundo o jornalista José Nêumane. O poema, originalmente, tinha o título de Momentos, era uma espécie de testamento dela.

EDUARDO ALVES COSTA

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NO CAMINHO COM MAIAKOVISKI

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

........
Por causa do nome, o presente poema foi atribuída ao poeta russo Maiakóviski, mas é mesmo do brasileiro Eduardo Alves Costa.

VIVIANI MOSÉ

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RECEITA PRA LAVAR PALAVRA SUJA

Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza,
por exemplo, a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas
depois de submetidas a esses cuidados,
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram a sujeira difícil.
Mas todas as tentativas de lavar a piedade foram sempre em vão.
Mas nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte, na medida que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo
—que atende pelo nome de amargura—
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade.
Agora, se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
A culpa, por exemplo,
mancha tudo que encontra
e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
A palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido
A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.
Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
Á noite permita que se deite,
não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme a palavra, plantada em sua carne,
prolifera em toda sua possibilidade
Se puder suportar esta convivência
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.

........
Viviane Mosé ficou famosa apresentando uma quadro sobre filosofia no Fantástico, da Rede Globo. Seus livroes de poesia estão esgotados.

CESAR VALLEJO

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OS DADOS ETERNOS

Meu Deus, estou chorando o ser que vivo;
pesa-me ter tomado o teu pão,
mas este pobre barro pensativo
não é chaga fermentada em teu costado;
Tu não tens Marias que se vão!

Meu Deus, se tu houvesse sido homem,
hoje saberias ser Deus,
mas tu, que sempre passaste bem,
não sentes nada de tua criação.
E o homem, sim, que sofre; o Deus é ele!

Hoje, que em meus olhos bruxos há fogo,
como há em um condenado
Deus meu, acenda todas a tuas velas
e jogaremos com o velho dado...
Talvez, oh jogador! ao dar a sorte de todo o universo,
surgirão as olheiras da morte,
como dois ‘ases’ fúnebres de lodo.

Meu Deus, e esta noite surda, escura,
já não poderás jogar, porque a Terra,
é um dado roído e já redondo
por força de rodar a aventura,
e não pode mais parar, senão em um buraco,
no buraco da imensa sepultura.

.........
Poeta ‘maldito’ peruano, falecido em 1938. Tradução de Percy Galimberti e Elson Delmutti, do livro “César Valejo” (esgotado), edição dos tradutores.

FERNANDO PESSOA

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QUANDO VIER A PRIMAVERA

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

........
Poema de Fernando Pessoa, do seu heterônimo Alberto Caieiro, do livro Poemas Inconjunto, de 1915

ASCENSO FERREIRA

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MINHA ESCOLA

A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
Complicado como as Matemáticas;
Inacessível como Os Lusíadas de Camões!

À sua porta eu estava sempre hesitante...
De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança:
Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol...
Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
Saltos da ingazeira pra dentro do rio...
Jogos de castanhas...
— O meu engenho de barro de fazer mel!

Do outro lado, aquela tortura:
"As armas e os barões assinalados!"
— Quantas orações?
— Qual é o maior rio da China?
— A 2 + 2 A B = quanto?
— Que é curvilíneo, convexo?
— Menino, venha dar sua lição de retórica!
— "Eu começo, atenienses, invocando
a proteção dos deuses do Olimpo
para os destinos da Grécia!"
— Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
— Agora, a de francês:
— "Quand le christianisme avait apparu sur la terre..."
— Basta
— Hoje temos sabatina...
— O argumento é a bolo!
— Qual é a distância da Terra ao Sol?
— ?!!
— Não sabe? Passe a mão à palmatória!
— Bem, amanhã quero isso de cor...

Felizmente, à boca da noite,
eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.

........
Publicado no livro Catimbó,em 1927. Ascenso Ferreira começou a colaborar em jornais em 1912, em Palmares e Recife (PE). A sua poesia filia-se à primeira geração do Modernismo. Para Manuel Bandeira, “os poemas de Ascenso são verdadeiras rapsódias do Nordeste, nas quais se espelha amoravelmente a alma ora brincalhona, ora pungentemente nostálgica das populações dos engenhos e do sertão”.

AUGUSTO DOS ANJOS

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A ÁRVORE DA SERRA

— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pos almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

.........
A Árvore da Serra é um poema ecológico do início do século, quando ainda não se falava em proteção à natureza. É do seu livro “Obra Completa, Editora: Nova Aguilar. O poeta Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu no Engenho Pau d'Arco, Paraíba, no dia 20 de abril de 1884. Vitimado pela pneumonia aos trinta anos de idade, morreu em Leopoldina, em 12 de novembro de 1914.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

STELA DO PATROCÍNIO

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EU NÃO SEI

Eu não sei o que fazer da minha vida
Por isso eu estou triste
E fico vendo tudo em cima da minha cabeça
Em cima do meu corpo
Toda hora me procurando me procurando
E eu já carregada de relação sexual
Já fodida
Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum

........
Esta poesia faz parte do livro “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”, organizado por Viviane Mosé, Azougue Editorial. Stela do Patrocínio foi interna do Centro de Psiquiatria Pedro II (RJ) de 1962 a 1966, quando foi transferida para a Colônia Juliano Moreira (RJ), onde faleceu em 1992, sem nunca mais saído do manicômio, sem parentes, sem ninguém próximo. Ela não escrevia, mas falava poesia e sabia disso, tanto que mudava a voz quando expressava poesia.

CAPINAN

Essas moças que eu desejo serão sempre desespero
Desejo Teresa, desejo Neusa
Desejo às dúzias e às centenas
As nativas e as estrangeiras
Louras, brancas, morenas
As de pouca melanina e muito desejo as negras
E todas que sentam à minha mesa
Que arrodeiam a minha cama e todas que nela deitam
Todas me tiram o senso
Mas a toda me ofereço
De tal forma que jamais descobrem a minha aflita natureza
Há tantas que eu quero
Que de tanto as querer é imenso o que eu não tenho
Há tantas que é sem tamanho o meu desespero


...........
José Carlos Capinan teve várias letras suas musicadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros músicos do Brasil. Este poema é do seu livro “Confissões de Narciso”, Editora Civilização Brasileira.

OSWALD DE ANDRADE

ERRO DE PORTUGUÊS

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português

.............

Oswald de Andrade (1890-1954) é um dos mais significativos autores modernistas da literatura brasileira. Participou da Semana de Arte Moderna, editou o jornal "O Homem do Povo" e ajudou a fundar "O Pirralho" e a "Revista Antropofágica". É de sua autoria o Manifesto Antropófago de 1928. Influenciou indiretamente o movimento Tropicália.

CÂNDIDO PORTINARI

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OS INVENTARIANTES

I
Os inventariantes pedirão conta dos cílios apedrejados.
Das madeiras inertes e dos cabelos perdidos e dos egoísmos.
Das penas das aves
Das chuvas inúteis.
Dos furacões e dos ventos.

II
Dos espaços perdidos. Das lágrimas secas
Dos carvões em brasa e das fogueiras de São João.
Das violetas sob a terra nos cemitérios
Das cores claras das moças morenas.

III
Das gotas d’água afundadas nas pedras.
Dos laranjais sem laranja e das malvadezas.
Das águas constantes e da lepra.
Quem responderá?
Os inventariantes quererão saber dos feios
e dos pequenos funcionários que estão sempre nas filas.

IV
Filas de caixões de defunto. Filas das prestações
Nas filas dos hospitais,
filas dos sofrimentos de arrancar dentes,
de arrancar o olho e transfusões de sangue com água
Nas filas de leite com água e nas filas de pedir água

V
Nas filas intermináveis da morte que não chega...
Pedirão conta do lodo.
Das espadas brancas.
Dos cães amedrontados
Dos pés estragados, dos dedos perdidos.
Da nave morta e repelida, cheia de gente viva.
Dos fornos queimando vivos.

VI
Queimando crianças com flores e velhos com sonhos
Mulheres antigas e jovens... Pedirão conta das éguas solteironas.
Dos frutos podres que os meninos não comeram
Dos que engendraram a maldição.
Dos cheiros misturados.

VII
Dos fogos perdidos. Das meninas feias morando distante
E chegando sempre na luz da aurora.
Pedirão conta dos moirões queimados e das angústias.
Dos ninhos de joões-de-barro
Das areias estéreis. Da malária. Da ameba. Das sezões.


VIII
Dos sarampos. Das tosses compridas.
Das seriemas e gabirobeiras
Dos meninos caolhos e barrigudos.Dos estropiados.
Dos espinhos. Das borboletas refletidas n’água estagnada
Das gotas de sangue desconhecidas.


XI
Dos urubus tristes e malqueridos.
Das moças sem dentes e sempre grávidas.
Das manchas amarelas nas pedras.
Ouvirão os horizontes fugidios?
Pedirão conta dos gritos sem eco.
Das nascentes nas montanhas.

X
Dos ruídos à-toa. Das almas mortas sem destino.
Dos enfartes no silêncio dos campos.
Pedirão conta dos silêncios intermináveis.
Dos pobres assassinados e dos assassinados a machado.
Dos desastres e trilhos enferrujados.

XI
Das porteiras cantadeiras e solitárias.
Das portas abandonadas. Das tristezas vagando.
Dos escorpiões e viúvas-negras só conhecidas dos pequeninos...
Pedirão conta da erva nascida do sopro da inocência.

............
Poema escrito pelo pintor brasileiro Cândido Portinari entre Nanci e Paris, em 1º de novembro de 1961. Do seu livro “A Revolta” (esgotado). Encontrei este livro na Bliblioteca Municipal Afonso Schimidt, Freguesia do Ó, São Paulo (SP)