sexta-feira, 7 de novembro de 2008

CLARICE LISPECTOR

As poesias que Clarice Lispector não escreveu
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Poesia garimpada na prosa
Clarice Lispector nasce em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro, durante a viagem de emigração da sua família em direção à América. Passa antes por Bucareste e Hamburgo, de onde parte para o Brasil. Em Recife, Pernambuco, sua mãe adoece, fica paralítica e depois falece - Clarice tinha 9 anos de idade. A sua família vai para o Rio de Janeiro, onde ela estuda e forma-se em Direito; passa a fazer traduções; publica contos e trabalha também como jornalista. Em 1942, Começa a namorar com Maury Gurgel Valente, colega de faculdade, casa-se um ano depois, com 23 anos de idade.

Ela não escrevia poesia
Seus romances e contos são impregnados de poesia e um deles, de 1973, “Água viva”, não cabe nas definições de gêneros. Sobre este livro, o jornalista Alberto Dines, em carta à escritora, diz que ele “é menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia".
De “Água viva” foram selecionados trechos de textos diversos, formatados aqui como poesia, pois são, de fato, poesia – onde Clarice Lispector revela particularidades do seu processo de criação e a necessidade vital que lhe era escrever. Certa feita ao responder à pergunta sobre porque escrevia, disse: “Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva".

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FIZ A CENA NASCER

É tão curioso ter substituído
as tintas por essa coisa estranha que é a palavra.
Palavras – movo-me com cuidado entre elas
que podem se tornar ameaçadoras;
posso ter a liberdade de escrever o seguinte: “peregrinos, mercadores e pastores guiam suas caravanas rumo ao Tibet e os caminhos eram difíceis e primitivos”.

Com essa frase fiz uma cena nascer, como num flash fotográfico.

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VOU

Não gosto do que acabo de escrever –
mas sou obrigada a aceitar o trecho todo
porque me aconteceu.
E respeito muito o que me aconteceu.
E respeito muito o que me aconteço.
Minha essência é inconsistente de si própria
E é por isso que cegamente obedeço.

Estou antimelódica.
Comprazo-me com harmonia difícil dos ásperos contrários.
Para onde vou?
E a resposta é: vou.



O instante
Clarice Lispector reconhece que o escritor, às vezes, se sente impotente diante da realidade. Diz: "Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...". Nesse sentido Clarice busca desvendar a si própria, ao mesmo tempo em que vai também desvendando cada momento. Vai em direção ao cerne das coisas e busca arrancar dali a palavra exata:

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O É DA COISA

Tenho um pouco de medo:
medo de ainda me entregar
pois o próximo instante é o desconhecido.
O próximo instante é feito por mim?
Ou se faz sozinho?
Fazemo-lo juntos com a respiração.
E com desenvoltura de um touro na arena.

Eu te digo:
estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já
que de tão fugidio não é mais
porque agora tornou-se um novo instante-já
que também não é mais.
Cada coisa tem um instante em que ela é.
Quero apossar-me do é da coisa



Dividida

Clarice Lispector foi com o marido para Nápoles, em plena Segunda Guerra Mundial, mas fica dividida entre a obrigação de acompanhar o marido e ter de deixar a família e os amigos. Quando chega à Itália, depois de um mês de viagem, escreve: "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar". Na seqüência termina seu segundo romance, “O lustre” e recebe o prêmio Graça Aranha com “Perto do coração selvagem”, considerado o melhor romance de 1943.
Em 1959 separa-se do marido e regressa ao Brasil com seus filhos, onde dedica-se intensamente à vida literária. Em 1969 publica seu "Hino ao amor" e ganha o prêmio "Golfinho de Ouro"; em 1970 começa a escrever “Água viva”, terminado em 1973. Nele busca definições inusitadas: a escritora quer se apossar do instante, explicá-lo, revelar o seu mistério.

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O PRESENTE É O INSTANTE

O presente é o instante
em que a roda do automóvel
em alta velocidade
toca minimamente no chão.
E a parte da roda que ainda não tocou,
tocará num imediato
que absorve o instante presente
e torna-o passado.

Eu, viva e tremeluzente como os instantes,
acendo-me e me apago,
acendo e apago,
acendo e apago.
Só que aquilo que capto em mim tem,
quando está sendo transposto em escrita,
o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar.
Mais que um instante, quero o seu fluxo.


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EXISTO SEM GARANTIAS

Perco a identidade do mundo em mim
e existo sem garantias.
Realizo o realizável
mas o irrealizável eu vivo
e o significado de mim
e do mundo e de ti não é evidente.
É fantástico,
e lido comigo nesses momentos com imensa delicadeza


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MISTÉRIO

E eu trabalho quando durmo:
porque é então que me movo no mistério


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SOLIDÃO

E ninguém é eu.
Ninguém é você.
Esta é a solidão.


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NÃO RESUMO

Não me posso resumir
porque não se pode somar
uma cadeira e duas maças.
Eu sou uma cadeira e duas maças.
E não me somo.



Em trechos de “Água viva” revela-se contida, entre o seu mundo interno (a loucura que seus escritos a levam) e a vida cotidiana.

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O ERRADO ME ATRAÍ

Aí posso pintar a essência de um guarda-roupa.
A essência que nunca é cantabile.
Mas quero ter a liberdade de dizer coisas sem nexo
como profunda forma de te atingir.
Só o errado me atraí,
e amo o pecado,
e a flor do pecado.

Mas como fazer se não te enterneces com meus defeitos,
enquanto eu amei os teus.
Minha candidez foi por ti pisada.
Não me amaste,
Disto eu sei.
Estive só.
Só de ti.
Escrevo para ninguém
e está-se fazendo um improviso que não existe.
Descolei-me de mim.

E quero a desarticulação,
só assim sou eu no mundo.
Só assim me sinto bem.


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CONTENÇÃO

Não, nunca fui moderna.
E acontece o seguinte:
quando estranho uma pintura e aí que é pintura.
E quando estranho a palavra aí é que ela alcança sentido.
E quando estranho a vida aí é que começa a vida.
Tomo conta para que não me ultrapassar.
Há nisto tudo aqui grande contenção.
E então fico triste só para descansar.
Chego a chorar manso de tristeza.
Depois levanto e de novo recomeço.


Acidente
Segundo Arnaldo Nogueria Jr. - "em 1966, na madrugada de 14 de setembro, a escritora dorme com um cigarro aceso, provocando um incêndio. Seu quarto ficou totalmente destruído. Com inúmeras queimaduras pelo corpo, passou três dias sob o risco de morte — e dois meses hospitalizada. Quase tem sua mão direita amputada pelos médicos. O acidente mudaria em definitivo a vida de Clarice. As inúmeras e profundas cicatrizes fazem com que a escritora caia em depressão".
Mas segue, publicando novos romances até que falece em 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário, vitimada por uma súbita obstrução intestinal. O enterro acontece no Cemitério Comunal Israelita.


PESQUISA
A captação da poesia implícita de Clarice Lispector (feita aqui em seu livro “Água viva”) foi realizada também em outros romances da autora por admiradores seus - que formataram como poemas alguns de seus textos, entre os que fizeram isto estão o padre Antonio Damázio e Soares Feitosa, ver site: http://www.revista.agulha.nom.br/cli.html
A pesquisa sobre a sua vida baseou-se em © Projeto Releituras, de Arnaldo Nogueira Jr
http://www.releituras.com/clispector_bio.asp

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